Embora o meu corpo saia da cama e se movimente pela casa, eu só acordo de verdade, pra valer, depois da primeira xícara de café. Antes dela, a ideia do novo dia sobrevoa a minha consciência sem conseguir efetivar o pouso. Esse é um hábito antigo, que pelo jeito vai me acompanhar pela vida afora. E quando se trata de café, que eu adoro, tenho lá minhas exigências: precisa ser forte, pouco adoçado, passado na hora. Questão de gosto, essa coisa indiscutível.
Uso cafeteira elétrica há muitos anos, e um dia desses fui surpreendida pelo curioso desejo de preparar um café à moda antiga. Na primeira oportunidade, comprei um coador de pano, utensílio comum na casa da minha infância e adolescência, mas ausente nos lugares onde morei depois. De quebra, pra completar o ritual, trouxe também um bule, uma graça, esmaltado na cor branca com a aplicação de uma vaquinha malhada toda sorridente. É que eu gosto do riso de tudo. De flores. De gente. De bichos. Dos dias de céu azul lisinho. Das noites carregadas de cachos de estrelas. Da canção que as ondas cantam quando tocam a areia. Às vezes, eu vejo até o riso contido do que não tem coragem de rir.
Ao chegar em casa, contente que nem criança diante do brinquedo novo, fui logo para cozinha tentar me entender com o dito cujo. É claro que antes de dar início à experiência, liguei para mamãe, minha fiel e experiente consultora para assuntos de forno e fogão. Sei que passar um café usando coador de pano não tem mistério algum, mas era algo inédito para mim e mesmo o óbvio costuma ter sutilezas que podem fazer diferença. Concluído o processo, eu que já bebi incontáveis litros de café ao longo da vida, saboreei aquele com direito à emoção de primeira vez. Há anos eu não bebia um café tão gostoso. Não, não foi porque eu fiz. Foi por aquilo que ele me fez acessar.
O cheiro, o sabor, não vinham exclusivamente daquele coador, mas de lugares distantes, ao mesmo tempo que presentes de forma perene no meu coração. Ele foi coado com a poesia de um monte de lembranças despertadas. O cheiro do café da minha mãe que chegava lá no quarto, de manhãzinha, quando eu relutava em acordar cedo para ir à escola. A mesa de fórmica amarela, na cozinha. A toalha plástica branca de flores azuis. O leite fervido, o pão quentinho com manteiga que alguém me ensinou a cortar em quatro pedaços. O farelo das cascas do pão sobre a toalha, que eu gostava de juntar com os dedos e comer devagar. Meu pai já arrumado para sair para o trabalho. O hábito que ele tinha de acenar para mim e para minha mãe quando chegava na primeira esquina da rua, lá longe. Uma saudade que se insinuava em mim no instante daquele aceno. Naquela época, um dia inteiro era coisa à beça e eu sabia que só o encontraria de novo quando ficasse de noite. A memória afetiva é um poema de amor que realça o sabor de tudo.
A vida pode ficar muito pequena quando olhamos para ela com o olhar estreito. O tédio acontece quando nos afastamos da capacidade de nos encantarmos com as coisas mais simples do mundo. De nos abrirmos às novidades. De inventarmos moda. De fazermos diferente. De aprontarmos artes capazes de deixar o coração respirar macio no meio de tanta aspereza. O tédio acontece quando nos afastamos da capacidade de buscar a ludicidade possível nos detalhes que nos acostumamos a chamar de banais. De nos desprogramarmos. De nos livrarmos um pouco dos nossos roteiros para ousar alguns improvisos.
Quando eu comentei com algumas pessoas a minha experiência com o coador de pano, houve gente que não entendeu nada: “Você está maluca? Esse troço dá muito trabalho!” Não sentiram a poesia. O simbolismo. A metáfora. Não perceberam que o que dá trabalho mesmo é viver sempre do mesmo jeitinho. Pois eu quero mais dessa maluquice que me ajuda a reinventar maneiras de estar aqui. Porque para se estar aqui com um pouco que seja de conforto na alma há que se ter riso. Há que se ter fé. Há que se ter a poesia dos afetos. Há que se ter um olhar viçoso. E muita criatividade.
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