terça-feira, 19 de outubro de 2010

Fé!


"Minha vó Edith era minha confidente desde os tempos de criança. Pra ela eu contava qualquer tipo de coisa com o coração todo aberto, porque eu sentia de forma muito clara a facilidade e o acolhimento com que me ouvia. Um bom confidente, às vezes, é apenas aquele que nos deixa livres para dizermos tudo o que quisermos sobre nós, inclusive bobagens das quais talvez nos arrependamos logo depois de dizê-las. Às vezes, é apenas aquele que interage com o nosso sentimento da vez sem estar com a razão toda arrumada para análises profundas, tiradas magníficas, sermões eloquentes, dos quais nem sempre precisamos. Um bom confidente, essa maravilha rara, é aquele que aproxima, generosamente, a vida dele da vida da gente e, apesar da mágica interação que acontece com essa proximidade, consegue manter a distância necessária para não confundir a sua história com a nossa. Há momentos em que a gente só precisa falar e se sentir, de verdade, ouvido. Só isso. Só isso tudo.

Pra vó Edith, lá na infância, eu contava os meus pequenos segredos infantis, que eram imensos para mim. As tímidas artes que eu aprontava, sem que ninguém desconfiasse, na maioria das vezes. A real intensidade da esperança de realizar as metas mais inocentes, como ganhar uma bicicleta Caloi no Natal, após exaustivas campanhas domésticas. O tamanho todo de certos medos que eu tinha, mas que mostrava, quando os mostrava, bem diminuídos. As primeiras dores que me apertavam, num tempo em que eu ainda nem sabia direito o que era dor e o que era aperto. Depois, já adolescente, eu lhe contava sobre cada novo projeto, logo assim que eram colhidos, fresquinhos, do pé de sonhos de folhas muito verdes que eu cultivava no coração. Contava, entusiasmada, sobre as possibilidades que faziam a minha vida inteirinha sorrir. Contava sobre os flertes, o clima dos encontros, os diálogos que aconteciam e aqueles que eu imaginava de forma tão apaixonada que até me pareciam de verdade.

Ela ouvia e eu saboreava a oportunidade daqueles instantes com o mesmo contentamento que sinto até hoje diante da certeza de cada bom e raro confidente que a vida me traz. Ela ouvia com muito ouvido, os olhos sorrindo por estar ali comigo, e, geralmente, com poucas palavras. Do que dizia, nas circunstâncias de cada novidade que eu lhe contava, a minha ansiedade por querer saber se a semente do meu sonho conseguiria florir ou não, ficou uma frase bastante frequente. Uma frase que, depois de tantos anos, ainda ouço, muito nítida, toda vez que meu coração bate mais forte por algum encanto: “Peça a Deus para que aconteça o que for melhor para você, porque Deus sempre sabe o que é melhor para nós; a gente, não.”

Não dizia para ela, mas eu ficava meio cabreira com aquela história, morria de medo de pedir aquilo. E se o que Deus sabia que era o melhor para mim não tivesse nada a ver com o que eu queria acreditar que era, no afã do meu desejo? E se o melhor que pudesse acontecer fosse simplesmente não acontecer o que eu esperava? Às vezes, queremos tanto o que queremos que não passa pela nossa cabeça que talvez isso possa não ser tão bacana para a nossa vida como a força do sonho faz parecer. Queremos somente o nosso desejo atendido e ponto, sem delongas. Não dizia para ela, mas geralmente eu achava mais tranquilo não pedir, não. Quando pedia, era mais ou menos assim: “Deus, que aconteça o que sabe que é melhor para mim, mas, olha só, você sabe que isso que eu quero é maravilhoso demais, não sabe? Se não está convencido, peraí um pouquinho que eu explico melhor e você vai me dar razão.”

Olhando para trás, porque às vezes só bem mais a frente conseguimos entender certas coisas do passado, eu percebo que, em vários momentos, ainda que eu não pedisse, parece ter acontecido o que Deus sabia que era melhor para mim e não o que eu superficialmente imaginava saber. Percebo que em algumas circunstâncias em que cheguei a lamentar pelo insucesso de planos que eu considerava os melhores do mundo, eu estava, na verdade, sendo poupada de encrencas das grandes. Hoje, eu entendo que quando a minha vó dizia aquilo ela estava apenas sugerindo, com outras palavras, que eu tivesse fé. Essa entrega diante do desconhecido. Essa possibilidade de soltarmos o suposto controle que acreditamos ter. Esse sentimento de que fazemos parte de uma inteligência que tudo toca, ama e conhece. Essa humildade para reconhecermos que na esfera da nossa mente mais grosseira nós sabemos muito pouco, quase nada. Essa confiança de que acontecerá realmente o que for melhor para nós, ainda que no tempo de cada acontecimento, tantas vezes cegos pelos nossos desejos, não possamos entender o que somente a nossa alma sabe.

Deus e a nossa alma vivem em contínuo diálogo desde os tempos mais remotos. São confidentes um do outro. Sabem segredos preciosos que não nos contam enquanto não nos for possível entendê-los. Veem cada fato sob uma perspectiva pela qual muitas vezes ainda não sabemos enxergar. Conhecem o jeito como as peças se encaixam, enquanto nos desgastamos tentando encaixá-las de qualquer maneira, com sofreguidão, para atender aos nossos interesses imediatos, mesmo que, restritos pela urgência dos seus apelos, não tenhamos visão do panorama real.

A fé é um exercício pra vida inteira. Muitas e muitas vezes, eu me distancio incrivelmente dela, achando que posso resolver tudo sozinha. Não é raro nessas ocasiões, na verdade é bastante comum, eu me atrapalhar toda num turbilhão de emoções que me drenam a energia e o sorriso. Mas, toda vez que consigo acessá-la, de novo, tudo se modifica e se amplia na minha paisagem interna. Na fé, eu sou capaz de me dizer, com amorosa humildade, que grande parte das vezes eu não sei o que é melhor para mim. Eu não sei, mas Deus sabe. Eu não sei, mas minha alma sabe. Então, faço o que me cabe e entrego, mesmo quando, por força do hábito, eu ainda dê uma piscadinha pra Deus e lhe diga: “Tomara que as nossas vontades coincidam”. Faço o que me cabe e confio que aquilo que acontecer, seja lá o que for, com certeza será o melhor, mesmo que algumas vezes, de cara, eu não consiga entender."

Ana Jácomo

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